Autor: Cândido Grinsztejn Rodrigues d’Almeida [1]
Orientadora: Maria Elena Rodriguez
A China é um importante player no cenário energético internacional. Desde 2009, o país asiático é o maior consumidor de energia, respondendo atualmente por 26,1% do consumo mundial de energia primária, além de ser o mais importante gerador de energia elétrica, representando 29% da geração mundial de energia elétrica (BP, 2021, p.10; 63). A China também é o maior emissor de CO2, em função do uso em larga escala do carvão para a geração de energia elétrica, e pelo fato de concentrar parte considerável da indústria pesada mundial[2]. O país concentra 30,7% das emissões mundiais de CO2 provenientes do consumo de derivados de petróleo, de gás natural e de carvão em atividades relacionadas a combustão – volume maior do que as emissões da América do Norte e Europa juntas (BP, 2021, p.15)
No último ano, a China tomou duas iniciativas importantes no que tange o combate às mudanças climáticas. O país se comprometeu em se tornar neutro em carbono até 2060[3], além de ter inaugurado em julho deste ano o maior mercado de carbono do mundo por volume de emissões (MACMILLAN-FOX, 2020; GLOBAL TIMES, 2021). Pese as críticas em relação à escala limitada da fase inicial do mercado de carbono, que apenas inclui emissores no setor de energia elétrica, e ao seu baixo preço de abertura, a iniciativa chinesa planeja abranger outras sete indústrias[4] (BI, 2021).
Nos últimos quinze anos, a China tem se empenhado em tornar sua matriz energética[5] menos intensiva em carbono, por meio da expansão da utilização de fontes renováveis, bem como através da redução, em termos relativos, do peso do carvão[6] na sua geração de energia elétrica. Esse processo de mudança na composição das fontes energéticas que compõem a matriz de um país é denominado de transição energética.
Trata-se de um processo amplo e de longo prazo, que envolve mudanças significativas na maneira como a sociedade satisfaz suas necessidades e se apropria de recursos energéticos. Na maioria dos casos isso implica não apenas na alteração da composição da matriz energética, mas também na adequação da infraestrutura industrial do país para receber o fornecimento da energia necessária para realização dos processos industriais, bem como na adaptação do setor de transportes para realizar os ajustes necessários para utilizar novas fontes de energia. Dessa forma, os desafios embutidos em uma transição energética extrapolam, e muito, o setor energético.
Na atual transição energética, não só a China, mas o mundo como um todo vem buscando diminuir o nível de emissões de gases de efeito estufa, que em grande parte é promovido pelas atividades humanas. Essa trajetória rumo a economias menos intensivas em carbono, vem se dando de forma muito mais destacada na matriz elétrica[7]. Está em curso um movimento de alargamento dessa matriz, em termos globais, no qual vem ocorrendo um crescente processo de eletrificação. Tal movimento é bastante nítido em alguns setores como o de transportes[8], por meio da difusão dos veículos elétricos e da eletrificação do transporte público, já em outros, como o setor industrial a adaptação é consideravelmente mais lenta.
Para a China o avanço da transição energética atende, simultaneamente, a dois grandes imperativos: a redução gradual da dependência de recursos energéticos importados[9] de origem fóssil e a redução das emissões de gases de efeito estufa. Dessa forma, o país ataca, a um só tempo, a segurança energética – encarada como questão de segurança nacional pela China – como também realiza um esforço de combate às mudanças climáticas, galgando seu espaço nas negociações internacionais do clima e buscando reduzir sua vulnerabilidade aos potenciais efeitos de mudanças climáticas (CHINA, 2021, p.20; 26; AIE, 2016, p.28; ZOTIN, 2018, p.89).
Devido ao gigantismo chinês, o esforço para a expansão da geração a partir de fontes renováveis ainda parece pouco expressivo se analisada a sua pequena – porém crescente – participação na matriz energética. Contudo, o país asiático já é o segundo principal centro em termos de geração a partir de fontes renováveis, atrás apenas da Europa, respondendo por 27,4% da geração mundial e apresentando um crescimento de 31,3% ao ano no período de 2009-2019 (BP, 2021, p.56). Ao final de 2020, as fontes renováveis, excetuando-se as usinas hidrelétricas de grande porte[10], já respondiam por 11,1% da matriz elétrica chinesa (BP, 2021, p.65).
A promulgação da Lei de Energia Renovável, em 2005, é um dos marcos de uma mudança de postura da China em relação à necessidade de realizar uma mudança na composição da sua matriz energética, a fim torná-la gradualmente menos intensiva em carbono. Tal marco introduziu uma série de políticas que buscaram, por meio da concessão de variados incentivos financeiros, promover a expansão das energias renováveis em sua matriz energética (WENG et. al, 2015, p. 25). O próprio desenvolvimento das energias renováveis é encarado desde 2007 como uma das medidas estratégicas para otimizar e tornar mais eficiente o uso de recursos naturais (NRDC, 2007, p. 4).
A energia solar fotovoltaica e a energia eólica[11] são duas fontes nas quais o acelerado crescimento acumulado das fontes renováveis vem se mostrando mais evidente na última década. No caso da energia solar fotovoltaica, a China é líder mundial em geração e em capacidade instalada[12], respondendo por 35,9% da capacidade instalada mundial, tendo apresentado um crescimento de 85,9% ao ano no período de 2009 a 2019 e aumento de 23,7% entre 2019 e 2020 (BP, 2021, p. 57-58). Para a energia eólica, na qual a China também é líder em capacidade instalada, porém fica atrás da Europa em termos de geração, os números são respectivamente: 38,5%; 28,1% ao ano e 34,2% (BP, 2021, p. 57; 59).
Entretanto, o país ainda tem um longo caminho a percorrer, pois o carvão ainda responde por 63,2 % da sua geração de energia elétrica, além de 56,5% do consumo de energia primária (BP, 2021, p. 11; 65). Mesmo que o carvão esteja em declínio, apresentando crescimento a uma taxa muito menor que os outros combustíveis fósseis e as fontes renováveis, ele ainda é largamente utilizado na China, que responde por 54,3% do consumo mundial de carvão (BP, 2021, p.23; 38; 49).
A relativa jovialidade da capacidade industrial chinesa baseada em carvão também é um fator importante que deve contribuir para tornar mais lenta a transição energética chinesa visto que não é factível substituir a expressiva parte da infraestrutura industrial do país, adaptada ao carvão, por eletricidade (IEA, 2021).
Apesar dos mais variados esforços[13] recentes da China para buscar uma descarbonização da sua economia, o consumo de recursos fósseis apresenta tendência de aumento, mesmo que no caso específico do carvão, em termos relativos, seja um aumento pouco expressivo em relação ao petróleo e, especialmente, ao gás natural – que é menos poluente. Isso se deve em função da tendência de manutenção do seu crescimento econômico (mesmo que em grau mais modesto do que o apresentado nas últimas décadas), associado ao alargamento da classe média chinesa, cada vez mais urbana, o que envolve a difusão de hábitos de consumo que demandam mais energia.
Além da sua trajetória interna de transição energética, tema da presente análise, destacamos o importante papel que a China, através de suas empresas e instituições financeiras, tem como investidor e financiador de projetos no exterior que contribuem para a descarbonização e para a transição energética de outros países e regiões. Paradoxalmente, o país asiático ainda vem concedendo na última década, mesmo que de forma decrescente, financiamento para projetos de geração de energia elétrica à carvão, notadamente no Sudeste Asiático e empresas estatais chinesas ainda vem investindo em usinas hidrelétricas de grande porte, que por vezes, geram impactos socioambientais significativos[14] (GALLAGHER, 2021; (ISA et al, 2018; IFC, 2017, p. 25; Cardona, 2020).
Adicionalmente, a China é uma grande produtora de uma série de tecnologias verdes, como turbinas eólicas e painéis solares, e as comercializa internacionalmente de forma bastante competitiva. Por isso, necessita de acesso a uma série de minerais críticos específicos que servem de matérias primas para estas tecnologias.
Os impactos que a transição energética da China pode trazer para o mundo são tremendos e, por isso, vale a pena ficar atento ao seu andamento. Na dimensão interna há um enorme potencial em termos de redução das emissões a nível mundial e de difusão e comercialização de tecnologias verdes. Pelo fato do país ser um grande investidor, financiador, além de um importante exportador de tecnologias verdes em escala global, suas decisões em termos de investimentos, financiamento e comércio, bem como suas diretrizes para os investimentos e o financiamento de projetos no exterior tem uma abrangência enorme.
Referências Bibliográficas:
BI, Zhao. All foam, no beer? Why China’s carbon trading scheme critics have it all wrong. South Morning China Post, 28 de Julho, 2021. Disponível em: <https://www.scmp.com/comment/opinion/article/3142720/all-foam-no-beer-why-chinas-carbon-tradi ng-scheme-critics-have-it>
BRITISH PETROLEUM (BP). BP Statistical Review of World Energy 2021. 70th Edition. Londres, 2021. Disponível em: <https://www.bp.com/content/dam/bp/business-sites/en/global/corporate/pdfs/energy-economics/statistical-review/bp-stats-review-2021-full-report.pdf>
CARDONA, Antonio J. P. Why did Ecuador’s tallest waterfall suddenly disappear? Mongabay, 2020. Disponível em: <https://news.mongabay.com/2020/03/why-did-ecuadors-tallest-waterfall-suddenly-disappear/>
CHINA. Proposal of the Central Committee of the Chinese Communist Party on Drawing Up the 14th Five-Year Plan for National Economic and Social Development and Long-Range Objectives for 2030. Xinhua News Agency, November 3, 2020.
GALLAGHER, Kevin P. China’s Global Energy Finance.Global Development Policy Center, Boston University. 2021. Disponível em: <https://www.bu.edu/cgef/#/intro>
GLOBAL TIMES. China to launch national carbon emission trading market in July. Source/Economy 7 de julho, 2021
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA) et al. Mais de 38 organizações denunciam violação de direitos indígenas no Teles Pires. 2018. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/isa-e-mais-38-organizacoes-denuncia m-violacao-de-direitos-indigenas-no-teles-pires
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY. Country Profile: China. Data Browser. 1, February, 2021. Disponível em: <https://www.iea.org/countries/china>
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (IEA). China’s Engagement in Global Energy Governance. Partner Country Series. 2nd. ed. France: IEA Publications, 2016. Disponível em: <https://www.iea.org/publications/freepublication s/publication/PartnerCountrySeries_ChinasEngag ementinGlobalEnergyGovernance_Englishversion.>
INTERNATIONAL FINANCE CORPORATION (IFC). Nam Ou River Basin Profile, Summary Document: Environmental and Social Characteristics of a Key River Basin in Lao PDR: relatório técnico. Washington, D.C., 2017
MACMILLAN-FOX, Eleanor. China Pledges Carbon Neutrality by 2060: China’s President Xi Jinping has pledged to peak greenhouse gas emissions by 2030 and reach net zero by 2060, emphasising the need for a “green revolution”. Climate Action, 6 de novembro, 2020. Disponível em: <https://www.climateaction.org/news/china-pledges-carbon-neutrality-by-2060>
NATIONAL DEVELOPMENT AND REFORM COMMISSION (NDRC). Medium and Long-Term Development Plan for Renewable Energy in China. People’s Republic of China. September, 2007. Disponível em: <https://policy.asiapacificenergy.org/sites/default/files/Medium%20and%20Long-Term%20Developm ent%20Plan%20for%20Renewable%20Energy%20%28EN%29.pdf>
ZOTIN, Marianne, Z. O Papel da China na Transição Energética Global: Estado, Indústria e Recursos. Dissertação (Mestrado em Planejamento Energético) – COPPE, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.
WORLD STEEL ASSOCIATION. Global crude steel output decreases by 0.9% in 2020. Brussels, 26 January, 2021. Disponível em: <https://www.statista.com/statistics/267364/world-cement-production-by-country/>
WENG, Xiaoxue; DONG, Zhanfeng; WU, Qiong; Qin, Ying. China’s path to a green economy: Decoding China’s green economy concepts and policies. International Institute for Environment and Development. Country Report. London, February, 2015.
Referências:
[1] Assistente de Pesquisa no BRICS Policy Center e Graduado em Relações Internacionais no IRI/PUC-Rio.
[2] O desafio de realizar uma transição, mesmo que gradual, do setor industrial chinês, que concentra boa parte
indústria pesada mundial, para indústrias mais tecnológicas e menos intensivas em energia e em carbono é
gigantesco, pois China concentra 56,5% da produção mundial de aço e 53,7% da produção mundial de cimento (WORLD STEEL ASSOCIATION, 2021; STATISTA, 2021).
[3] Mesmo que também tenha anunciado que o pico de emissões só será atingido pouco antes de 2030.
[4] Materiais de construção, siderurgia, petroquímica, química, metais não ferrosos, celulose e aviação.
[5] A matriz energética representa o conjunto composto por diferentes fontes de energia disponíveis para um Estado ou região sanar a totalidade das suas necessidades energéticas.
[6] Em 2007, o carvão atingiu, em termos relativos, o seu pico na geração de energia elétrica chinesa, quando foi a fonte responsável por 83% desta (IEA,2021).
[7] A matriz elétrica é formada pelo conjunto de fontes disponíveis apenas para a geração de energia elétrica. Ela é uma fração da matriz energética.
[8] O setor de transporte é aquele no qual o consumo de petróleo se concentra na China (IEA, 2021). Por isso a eletrificação deste setor, que produz um alargamento da matriz elétrica, pode contribuir para vir a contribuir para a descarbonização da economia caso a expansão da capacidade adicional de geração de energia elétrica se dê majoritariamente através de fontes renováveis.
[9] Desde que se tornou uma importadora líquida de petróleo em 1993, a China vem aumentando sua dependência de recursos energéticos fósseis importados. Atualmente, cerca de 72% do petróleo consumido na China é importado e o seu transporte envolve transporte marítimo de longas distâncias, que muitas vezes passa por gargalos logísticos mundiais, como o Estreito de Malaca e o Estreito de Ormuz (BP, 2021, p. 18; 23).
[10] Pelo fato de sua construção e operação, muitas vezes, implicar em impactos socioambientais significativos, optamos por separá-las das outras fontes renováveis. Além disso, o Relatório anual da British Petroleum (Statistical Review of World Energy), documento largamente consultado para a elaboração do presente texto, coloca as hidrelétricas em uma seção separada.
[11] Essas duas fontes produzem eletricidade, assim sua expansão atinge diretamente a matriz elétrica e, pelo fato desta matriz estar embutida na matriz energética, afeta esta de forma indireta e em menor intensidade.
[12] Trata-se da potência máxima que pode ser gerada caso todas as usinas de uma determinada fonte energética de um país operem com o máximo de sua capacidade. Raramente é uma realidade, o que implica em um descompasso entre a capacidade instalada e a geração de energia elétrica que de fato ocorre.
[13] Destacamos entre esses variados esforços o forte e acelerado, porém, ainda incipiente, investimento em energia solar e eólica na última década e o início do processo de desindustrialização, no qual vem ocorrendo um movimento de longo prazo de mudança gradual da ênfase em indústrias pesadas, que são intensivas em energia, para indústrias com maior tecnologia, que produzam bens de maior valor agregado (BP, 2021, p. 58-9 ; China, 2021, p. 9-10)
[14]Alguns exemplos são: a usina hidrelétrica São Manoel, construída pela China Three Gorges em consórcio com Furnas Centrais Elétricas e a energia de Portugal na Amazônia Brasileira; o complexo hidrelétrico de Nam Ou, construído pela Sinohydro em consórcio com a Electricité du Laos no Laos; o projeto hidrelétrico Coca Codo Sinclair, construído pela Sinohydro no Equador.