Crise de Refugiados; Quais os Desafios para a União Europeia?

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O professor Pierre Vercauteren (Universidade Católica de Louvain) veio à PUC-Rio no dia 8 de setembro de 2016 para a palestra “Immigration: what challenges for the E.U.?” sobre a chamada crise dos refugiados, que, como bem apontou o professor Bruno Magalhães (IRI/PUC-Rio), mediador do evento, continua sendo um problema embora a atenção da mídia tenha sido deslocada dela, pelo menos no Brasil.

ENTREVISTA

Aproveitando a visita do professor Pierre Vercauteren, fizemos uma pequena entrevista logo após o término de sua palestra. Nela o professor fala sobre como a atual crise dos refugiados é abordada pela União Européia, sobre os recentes pedidos pela formação de um exército da União e sobre as limitações que um Estado-nação enfrenta quando tem de lidar com a questão dos refugiados. 

VEJA O VÍDEO COMPLETO DA PALESTRA “IMMIGRATION: WHAT CHALLENGES FOR THE E.U.?”

O palestrante iniciou seu discurso relembrando que a população europeia está em declínio, devido a uma menor taxa de natalidade que é marca característica de economias avançadas, e de acordo com a Organização das Nações Unidas, o continente europeu precisa da imigração para reverter o cenário demográfico decrescente e atingir um nível que possa sustentar o crescimento econômico no futuro. O segundo ponto que ele fez em sua introdução é que a U.E. é, por natureza, totalmente diferente do Brasil, que é um país com uma população e cultura miscigenadas. Na U.E., o que há é uma adição de Estados com populações mais ou menos estritamente definidas, e que compartilham uma história que foi por séculos conturbada, o que torna o multiculturalismo problemático para a U.E., tanto vindo de dentro quanto de fora.

O prof. Vercauteren optou por estruturar sua apresentação em duas partes: primeiro, o palestrante esclareceu características da situação da migração entre os países internos do bloco e também para dentro da U.E.; segundo, comentou alguns aspectos da política de imigração dentro da E.U.

É importante notar que a migração para dentro da Europa tem tornado historicamente a forma de invasões militares ou derivadas de outras invasões, com poucas exceções. Aqui ele cita os movimentos das populações dentro do Império Romano, também a diáspora dos judeus para dentro da Europa tendo origem em guerras na terra natal desta população, a migração do islã na Península Ibérica e nas expansões turcas no leste europeu e também os otomanos estabelecendo um império no sudoeste da Europa. Também houve, segundo o palestrante, uma substancia movimentação de muçulmanos para dentro da Europa desde o início da era moderna, vindo principalmente da Anatólia e do Magreb. Havia também movimentos populacionais dentro da Europa no contexto das guerras religiosas e conflitos entre Católicos e Protestantes. Também houve movimentações como consequência da Segunda Grande Guerra no século XX. Após esse momento, países que foram majoritariamente fontes de emigração na Europa, como Portugal, França, Irlanda e Reino Unido se tornaram países receptores de imigrantes, quando seus padrões de vida se elevaram, invertendo o sentido dos movimentos populacionais.

O professor Vercauteren segue apontando que Acordo de Schengen, que estabeleceu que pode-se viajar livremente dentro da Europa, foi um marco, uma vez que todos os processos de integração na Europa desde os anos 1950 lidavam com as fronteiras bem delimitadas entre os Estados, mas após o Acordo já não era mais preciso pedir permissão para viajar entre os países-membros da U.E. Cidadãos e famílias da U.E. têm o direito de viver e trabalhar onde quer que estejam dentro da U.E. por causa do Acordo de Schengen. Os cidadãos de outros países de fora da U.E. só podem usufruir dos mesmos direitos se tiverem uma permissão especial de residência da U.E. ou se tiverem familiares europeus. Mesmo assim, aqueles que possuem a permissão de residência nos Estados do Acordo de Schengen têm os mesmos direitos de viajar e morar nos países do Acordo que os cidadãos desses países.

Outro problema apontado pelo professor é que os países do Leste Europeu se tornaram fontes de imigrantes, ainda nos anos 1990. Então, muitos poloneses passaram a viver no Reino Unido e muito romenos e búlgaros passaram a viver na Espanha e na Itália, por vários e diferentes motivos. Desde então, alguns desses movimentos têm se invertido, com muitos poloneses voltando a seu país de origem com o avanço da situação econômica nele e crises no Reino Unido. Outra tendência apontada pelo professor Pierre Vercauteren são as populações do norte da Europa movimentando-se rumo ao sul do continente, e ele então cita o caso dos ingleses vivendo na Espanha.

Passando então à análise da migração de fora da U.E. desde os anos 1980, o palestrante aponta que alguns apontam para a inversão dos movimentos populacionais (passando dos que saem da Europa para os que entram na Europa) ocorreram devido ao aumento da desigualdade entre nações ricas e pobres do mundo. O professor argumenta que assim, então, os países europeus estão ficando cada vez mais multiculturais, e para isso apresenta alguns dados oriundos de diversos estudos de caso. Olhando para a França, o palestrante destaca os laços históricos com as ex-colônias, ainda importantes, uma vez que a maioria dos imigrantes neste país vêm da região do Magreb, região essa que foi colonizada pela França, além de encontrar dados semelhantes em outros países europeus e suas ex-colônias. Outra tendência é a de populações de países centro-europeus, como da Lituânia, Romênia e Azerbaijão, moverem-se para países ocidentais.

Após isso, o professor entra na segunda parte de sua apresentação: a política comum de imigração. Para o início do debate, o palestrante propôs duas questões: porque deveria haver uma política comum de imigração uma vez que este é um assunto de soberania, portanto, a ser tratado diretamente pelos Estados? Essa resposta demanda que voltemos aos motivos iniciais da integração europeia, que o professor apresenta como sendo um conjunto de três pilares: criar e fortalecer a paz; garantir o desenvolvimento econômico depois da Segunda Grande Guerra e, por último; dar mais voz aos europeus no mundo, num contexto em que o continente se torna menos central, já que as duas superpotências da Guerra Fria roubaram os holofotes no cenário global. E a segunda questão: como pode essa integração ser atingida? Ele responde a essa pergunta através da via econômica, em primeiro lugar, com um mercado comum. O surgimento da ideia do mercado comum é datada de 1957, onde ele foi proposto como um espaço em que os produtos pudessem ser negociados e transportados livremente, sem taxas adicionais de alfândega entre os países que o compunham. O professor aponta para o fato de que, para que haja livre movimentação de mercadorias entre os países, também é necessário que haja livre movimentação dos profissionais que fazem esse transporte entre os países. A ideia foi gradualmente expandida para o livre trânsito dos trabalhadores, e daí a ideia de livre trânsito de pessoas em geral emergiu. Vercauteren explica que isso é como um efeito em cadeia: começando com livre trânsito de mercadorias, então livre trânsito de motoristas de caminhão, e assim adiante até o livre trânsito de pessoas em geral. Então, a política de migração dentro da U.E. é regida pelo princípio de livre movimentação dentro dos 26 Estados da Área Schengen.

O professor explica o que é, de fato, a Área Schengen. Ela é constituída de 22 membros da U.E. junto à Islândia, Noruega, Lichtenstein e Suíça. Assim, alguns membros da U.E. ficaram de fora da Área, e dois deles decidiram por não estarem dentro: o Reino Unido e a Irlanda, por causa da sua localidade geográfica específica. De acordo com autoridades da U.E. outros países membros não cumprem os critérios para a entrada na Área Schengen. Os membros da Área permitem que os cidadãos se movimentem livremente, mas mantém a possibilidade de suspender esse direito e implementar controles de fronteira caso entendam que a segurança ou ordem públicas estejam sob ameaça, e assim alguns países o fizeram como resposta aos ataques terroristas na Europa em 2015.

Prof. Vercauteren então lembra que o item 7 do Acordo de Lisboa prevê que a U.E. deverá manter uma política de relações exteriores comum e baseada na solidariedade entre os membros da organização, e portanto a política comum de imigração visa harmonizar a entrada e permanência de cidadãos de outros países na União, além de lembrar também do artigo 77 que prevê a criação de uma rede de monitoramento e gerenciamento das fronteiras externas. Assim, ele prevê uma política comum de asilo, a presença de uma “polícia europeia” nas fronteiras e a criação de um sistema judiciário para lidar com o problema da imigração. Aqui, o professor chama a atenção para 3 aspectos fundamentais: controle de fronteiras, política de asilo e o problema da imigração em si.

Assim, o professor alega que os Estados-nacionais não podem lidar com os problemas das recentes ondas de imigração sozinhos e delegam essas responsabilidades, à organização principalmente através do Tratado de Lisboa e do Acordo de Schengen. A U.E. responde através da implementação de um sistema único de vistos, controle comum das pessoas cruzando as fronteiras, a definição das condições sob as quais os cidadãos de outros Estados podem se locomover dentro da U.E. e a integração do gerenciamento das fronteiras externas. Além disso, o Acordo de Lisboa também aumenta as responsabilidades do Tribunal de Justiça Europeia, por exemplo quando um país deseja restabelecer o controle temporário de suas fronteiras, a Corte Europeia de Justiça pode estipular se isso é legal ou não, e também de interpretar questões relacionadas à livre movimentação de pessoas.

Dessa forma, o palestrante pôde afirmar que, enquanto continuar sendo função do Estado-nação fazer a fiscalização e controle das fronteiras, a U.E. teria mais poder de lidar com problemas como terrorismo, imigração ilegal e tráfico de pessoas, e enumera as medidas que foram tomadas para tal fim: o visto comum, a base de dados Schengen (sistema de compartilhamento de informações acerca de pessoas suspeitas de cometer atos terroristas), o novo sistema de adição de digitais ao sistema de vistos, e, mais tarde, foi criado também um sistema chamado Frontex, que é um órgão composto de oficiais da polícia que patrulham as fronteiras externas da U.E., impedindo a entrada de imigrantes ilegais. Além disso, o prof. Vercauteren lembrou que a Frontex está sendo fortalecida, e que há o desenvolvimento de procedimentos comuns para a política de asilos e, por último, a cooperação com outros Estados para impedir a chegada de mais imigrantes às fronteiras europeias.

Os tratados, segundo o palestrante, fornecem a base legal para que isso tudo seja feito. A ideia, de acordo com o professor, é dar um tratamento justo a cidadãos de outros países não membros e trabalhar em conjunto com esses países para prevenir o tráfico de pessoas, de forma a aumentar a luta contra isto. Ainda de acordo com ele, um grande problema que se põe no caminho de um maior fortalecimento é o fato de que a imigração ainda é um problema que diz respeito à soberania estatal, e não há nenhum Estado-nação no mundo que seja capaz de, sozinho, evitar que haja imigração ilegal.

De acordo com o palestrante, a crise dos refugiados atual está questionando a construção das instituições europeias em diversos níveis. Primeiro, o objetivo da paz está revelando o problema de viver em conjunto; além disso, a própria noção de cidadania europeia está sendo posta em jogo, já que ela pode levar ao fechamento das fronteiras ou a uma sociedade mais aberta. A crise também revelou o desafio de viver em conjunto dentro de cada Estado-membro da União uma vez que cada um desses Estados é mais multicultural do que antes, o que traz fortes reações vindas de setores mais conservadores a esse multiculturalismo. Concluindo a palestra, o professor lembra também que toda crise traz em si uma oportunidade para o avanço, com a possibilidade de uma solução em comum e integrada, o que fortalece ainda mais a União ao tempo que enfraquece os setores conservadores das sociedades e países da União.

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