Reagir exige enxergar

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Bianca Carvalho

Carolina Salgado

Luís Fernando Barros

Paula Rocha

Renan Canellas

aprox. 16 min de leitura

Introdução

O ponto de partida: pensar sobre como negacionismo e ciência impactam na formulação e implementação de políticas públicas. A jornada: estivemos constantemente às voltas de quem somos nós nesse debate, isto é, qual é o lugar que ocupamos enquanto cidadãos com tanto acesso à informação e abertos ao conhecimento. Lemos e ouvimos questionando – assim identificamos a essência do aprendizado, que tampouco se resolve nas conversas sobre oportunidade de educação. Pensar sobre o significado desta oportunidade e como ele atinge camadas individuais de valores, formação, tradição e moral. E então percebemos nossa dupla função social em tempos de negacionismo: a de escuta atenta e a de preparação constante. Reagir exige enxergar. Mas enxergar o que?

Primeiro, propomos enxergar uma diferenciação: dentre o tecido social brasileiro, atualmente esgarçado e propenso à disseminação de dúvidas, polêmicas, controvérsias e desconfianças, existem os que se encontram em negação e os negacionistas. Negação é o ato de negar a existência – de um vírus, um desastre natural, um genocídio – negando, portanto, a própria realidade porque ela nos incomoda e não nos convém permitir a sua existência. A negação resulta do desejo de escapar de uma verdade desconfortável, apesar de inexorável, e que exige sobretudo mudanças de atitude.

Freud a define como “um modo de tomar conhecimento do reprimido; na verdade já é um levantamento da repressão, mas naturalmente não a aceitação do reprimido. Aqui se pode ver como a função intelectual se dissocia do processo afetivo (…). Negar algo no juízo no fundo significa: isso é uma coisa que eu preferiria reprimir” (1925:10-11). Como veremos nas próximas seções, a negação está presente em denúncias negacionistas precisamente através das suas dissociações discursivas entre as dimensões intelectual e afetiva. Isto é, “o negacionista engaja com o sentimento de insatisfação e ceticismo [diante daquilo que preferia reprimir], oferecendo discurso para pessoas que não acreditam que o sistema possa mudar e que, afinal, o melhor é se beneficiar dele, “se dar bem” (Salgado 2022:97).

Já o negacionismo é um movimento de negação a consensos científicos, de base organizada, que serve a interesses ideológicos e econômicos. Se utiliza de diversas ferramentas para disseminar a dúvida, respaldando a negação com o objetivo de criar uma ‘verdade paralela’ de que só existe aquilo que não nos afeta e agride. O negacionista atende aos anseios afetivos de sujeitos que se sentem vedados do debate público por cientistas e acadêmicos, apresentando uma falsa dinâmica de ‘disputa por verdades’. Se a ciência depende de evidências e o negacionismo se baseia em ignorar evidências, como demonstrar que algo não é? Se todos têm o direito de falar, a quem devemos ouvir? (TAKIMOTO, 2021). A engenharia negacionista parece mesmo complexa: dar aparência de ciência é o que valida a desinformação que nega o conhecimento científico!

Para evidenciar toda essa reflexão, as próximas seções propõem enxergar suas práticas. A partir do documentário “7 denúncias: as consequências do caso Covid-19” produzido pela Brasil Paralelo – que se define como “uma empresa de entretenimento e educação com o propósito de resgatar bons valores, ideias e sentimentos no coração de todos os brasileiros” (BRASIL PARALELOb) – selecionamos algumas linhas de questionamento (as denúncias) com as quais engajar criticamente para, assim entendemos, nos capacitarmos enquanto sociedade à reação.

Denúncia 1: Autoridade científica versus o papel do Estado

Quem deu aos cientistas a autoridade de dizer como lidar com uma pandemia ou afirmar que estamos diante de uma crise climática? Faz parte da agenda do negacionismo pôr em xeque a autoridade científica, abalando a confiança da população na ciência. Nesse sentido, fazer uso de um discurso que transforma a ciência em um tribunal moral e social, que opera em uma ditadura intelectual, torna-se uma prática cotidiana. Isso porque a ciência se blinda de julgamentos através do método, alcançando certos consensos. Mas, diferentemente da política, a ciência não se politiza; já a política, por definição, disputa o poder do consenso. Tal agenda do negacionismo é percebida em governos de extremistas, como por exemplo o de Jair Bolsonaro, principalmente nas áreas da saúde, da política externa e do meio ambiente.

Na saúde, o acontecimento da pandemia de COVID-19 implicou na modificação de hábitos comuns na vida de toda a população mundial, como ir ao mercado e realizar confraternizações com amigos e familiares. O incômodo gerado pela necessidade de mudanças (mesmo que temporárias) para a contenção do vírus fortaleceu discursos e ações contra as medidas de prevenção, como o isolamento, por parte da população, a partir da incitação do governo federal.

Imagem 1: Sérgio Lima (AFP). Disponível em Benites & Betim em El País, 2020

A minimização do COVID-19, tratado como apenas uma “gripezinha” e a banalização das mortes causadas pelo vírus através da alegação de que morrem pessoas todos os dias, assim como o discurso anti-vacina, são exemplos da atuação do negacionismo. Ainda, a preferência por métodos não comprovados cientificamente para combater o vírus, como o uso do falso tratamento precoce (azitromicina, ivermectina, prednisona e hidroxicloroquina), foi amplamente divulgado pelo governo federal e por diversas prefeituras do país – sobretudo através de redes sociais como o Twitter, e propagandas produzidas pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – tendo respaldo de parte da sociedade médica brasileira.

Imagem 2: Reuters. Disponível em Magenta em BBC, 2020

A distância entre os cientistas e a população é usada pelos negacionistas para questionar que aqueles não conhecem a realidade da população e que se consideram “deuses”, com o poder de dizer o que é ou não verdade. Sobre tal questionamento, a pesquisadora na Universidade Federal Fluminense Ana Morel, em seu ensaio sobre o negacionismo da COVID (2021), menciona o professor de filosofia da UFMG, Ernesto Perini, que destaca:

“[…] ainda outra motivação legítima para a popularização do negacionismo: o desejo de participar, de produzir as próprias teorias, o próprio conhecimento. Essa constatação, ainda que controversa, aponta para um fator relevante: não podemos ignorar o modo como as ciências se constituem na relação com a população. Não podemos desconsiderar que o elitismo e o colonialismo presentes na constituição das ciências modernas são fatores que colaboram para distanciar e gerar desconfiança em parte da população” (MOREL, 2021).

No Brasil, tal distanciamento mencionado por Perini é problemático na medida em que grande parte da ciência é produzida com recursos públicos, nas universidades e centros de pesquisa e tecnologia. Dessa forma, em nosso contexto, negar a ciência é, em larga medida, negar a importância do Estado e investimento público nesta área, o que é parte da política econômica de Bolsonaro e Paulo Guedes. Esse sentimento de revolta contra a ciência produzida pela “elite” (os cientistas de instituições públicas), é extravasado na elaboração de uma “interpretação científica própria”, nesse caso, a abordagem de médicos que apoiam o tratamento precoce. Isso fica nítido quando observamos a seguinte ideia, qualificada como desinformação pela repórter Júlia Rohden da Agência Pública (2022), feita pelo oftalmologista – e ex-candidato ao Senado pelo Partido Novo de Santa Catarina – Luiz Barbosa, em vídeo amplamente circulado nas redes sociais:

“Hoje a Aids, mesmo sem a vacina, é uma virose controlada em todo o mundo, graças ao coquetel da Aids. Diria que o mesmo podemos falar sobre a Covid. A azitromicina sozinha não resolve, outras drogas sozinhas [aparece escrito no vídeo “hidroxicloroquina, ivermectina, vitamina D, zinco e corticoides”] não irão resolver, mas quando associadas fazem um efeito sinérgico, onde 1+1 = 10, 10+1 = 100 e 100+1 = 1000.”

Podemos também notar o discurso negacionista através da dita “nova política externa brasileira”, que se baseia no aparelhamento da máquina pública para a difusão de discursos puramente ideológicos, marcados pelo negacionismo, que pautaram a condução da política externa no governo Bolsonaro. Textos como “Chegou o comunavírus”, escrito pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, foram disponibilizados no portal do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o que demonstra tal aparelhamento dos canais oficiais do governo. O texto é uma resposta ao filósofo esloveno marxista Slavoj Žižek, que discute, no contexto da pandemia de Covid-19, a necessidade de um “vírus ideológico (…) que [nos] faça imaginar uma sociedade alternativa (…) que vá além do Estado-nação e se realize na forma da solidariedade global e da cooperação” (ŽIŽEK apud. ARAÚJO, 2020)

Araújo descaracteriza a argumentação do autor ao afirmar que este “[n]ão está sequer interessado naquilo que funciona (…) para combater o coronavírus”, uma vez que o único objetivo dele seria utilizar a pandemia “como escada para descer até o inferno, cujas portas pareciam bloqueadas desde o colapso da União Soviética, mas que finalmente se reabriu” (ARAÚJO, 2020). A deturpação dos argumentos de Žižek é proposital, assim como a própria divulgação em canais oficiais, tudo com o objetivo de negar ativamente a ameaça à saúde coletiva e, como veremos adiante, negar as ‘organizações globalistas’ como a OMS e outras agências da ONU. Estas são tidas como ameaças internacionais que doutrinam os países a agirem contra seus interesses e soberania. Como disse Araújo, a ideia era fazer do país um pária no sistema internacional (FERNANDES, 2020), o que de fato aconteceu.

Na área do meio ambiente, muitos foram os casos em que o governo mascarou fatos para sustentar a fantasia de que a gestão conduziu uma ótima política de preservação ambiental. Embora haja uma série de dados que comprovam seu retrocesso, Bolsonaro consegue prender seus apoiadores a esta “crença”. Um exemplo usado por apoiadores do governo foi o gráfico a seguir, postado em uma página do Instagram, que mostra uma comparação da área queimada do Bioma Amazônia em cada um dos governos, desde o primeiro mandato de Lula (2003-2010) até o de Bolsonaro (2019-2021):

Figura 1: INPE em Economista Visual no Twitter, 2022.

Uma visão simplista e rápida do gráfico, nos leva a entender que, durante os mandatos do ex-presidente Lula, o número de área desmatada foi consideravelmente mais alto. Isto porque o valor evidenciado se refere a km2 de área queimada. Por consequência, da forma com que os dados se apresentam, interpreta-se que no governo Bolsonaro, o nível de desmatamento foi menor em comparação aos governos anteriores. Porém, quando analisamos o gráfico do desmatamento da floresta Amazônica, desde o governo FHC ao governo Bolsonaro, os dados podem ser interpretados de outra maneira:

Figura 2: PRODES em Economista Visual no Twitter, 2022.

No gráfico acima, percebe-se que o nível de desmatamento no governo Lula diminuiu de maneira considerável ao longo dos seus dois mandatos. Entretanto, quando notamos os números do governo Bolsonaro, identificamos que o desmatamento aumentou. Portanto, ao analisar os dois gráficos, podemos compreender que o percentual de área queimada não necessariamente implica a totalidade de área desmatada. O erro a que somos induzidos a pensar é que desmatamento é sinônimo de queimada quando, na verdade, o desmatamento se expande para além das práticas de queimada, abarcando também mineração, madeireiras, garimpo e pecuária.

Tal manobra dos apoiadores do governo mobiliza acusações de interesses financeiros e políticos aos demais atores que contestem sua versão dos fatos, como ocorreu em discurso do próprio presidente na Assembléia Geral da ONU, em 2019: “É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo. Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista” (AGÊNCIA BRASIL, 2019). Nesta fala, o presidente ataca não só outros Estados do sistema internacional, como também invalida dados científicos, fomentando crises éticas e o não-reconhecimento da esfera pública sobre o que diz a ciência.

Denúncia 2: Oportunismo político e controle de opinião

O que acontece quando somos questionados acerca da intencionalidade que justifica as políticas públicas? Isto é, como reagir à ideia de que o Estado estaria à serviço de si mesmo – para atender apenas a interesses setoriais de certas classes e partidos políticos, descolado do bem comum – instrumentalizando a máquina pública de forma oportunista, irresponsável e mal intencionada?

Temos nos canais oficiais de comunicação, na aprovação de normas e legislações e na mobilização de forças de segurança e da burocracia os principais focos para denúncias de que estaríamos sendo intencionalmente sabotados pelo poder público em meio a contextos de crises, incertezas e medo de um ‘inevitável apocalipse’, como preconizam as vozes por trás das mesmas.

Estas denúncias entendem a ação estatal como um circuito de imposição de valores, controle e manipulação da opinião pública, bem como ataques à liberdade de expressão individual e de manutenção de uma ordem social que serve cada vez menos à maioria. Propagar como impedir esta ação é o objetivo das referidas denúncias. A nós, cabe entender como estas vozes, denúncias e objetivos vêm sendo introjetados na sociedade, transformando valores, ideias e sentimentos coletivos em nome de uma prometida ‘missão libertária’.

Um bom exemplo que pode ser citado a respeito de alegações de agentes do governo que ilustram o negacionismo agindo sob estrito oportunismo político, em prol de interesses financeiros e privados, é o discurso do atual Ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite na COP27, realizada em Novembro de 2022 em Sharm El Sheikh, no Egito. Em sua fala, o Ministro expõe:

“Trabalhamos junto com o setor privado para encontrar soluções climáticas e
ambientais lucrativas para as empresas, as pessoas e a natureza. Invertemos a lógica
dos governos anteriores, que só agiam para multar, reduzir e culpar. Este governo faz
políticas para incentivar, inovar e empreender, criando, assim, marcos legais para
uma robusta economia verde, com geração de emprego e renda a todos os brasileiros.
(LEITE, 2022).”

Aqui é percebido que, além das afirmações a respeito das medidas ambientais que não compactuam com a realidade, há também um posicionamento em prol do livre mercado e da privatização. Isso denota o constante embate entre ambientalistas e defensores do neoliberalismo, uma vez que, para o livre mercado, regulamentações da natureza seriam a derrocada para o socialismo. Isso acontece porque, para os ambientalistas, as consequências do aquecimento global se devem ao sistema capitalista neoliberal no qual a sociedade se encontra, de modo que seja preciso a ação do Estado para corrigir as falhas do mercado e regulamentar a exploração dos recursos da natureza.

Este pensamento se contrapõe ao dos fundamentalistas neoliberais, dado que para estes, a interferência estatal no mercado reduz a sua liberdade. Oreskes & Conway (2010:251, tradução própria) explicam: “sem progresso econômico não haveria crescimento econômico, e sem crescimento os governos seriam forçados a controlar os recursos. E para controlar os recursos, os governos teriam que controlar as pessoas”. Ou seja, na perspectiva dos negacionistas do clima, o ‘ambiental-socialismo’ quer controlar as pessoas, e o governo brasileiro, se colocando como baluarte da liberdade individual, valoriza os empresários.

Nesse mesmo ponto de vista, há críticas às organizações internacionais, estas vistas como parte do globalismo, pois seriam os meios para impor determinadas normativas contra a soberania dos Estados. No ebook “Como saber o futuro da política brasileira?”, divulgado digitalmente pela mesma Brasil Paralelo, é exposto que: “o globalismo é um movimento que busca usar a globalização como instrumento para transferir o poder decisório da autoridade dos Estados para Organizações Transnacionais, com o intuito de estabelecer uma governança global” (BRASIL PARALELO, 2022). Nesse sentido, buscar negociações fora do guarda-chuva das organizações internacionais se tornou fundamental para combater o dito movimento político ‘globalista’.

Assim, questionamentos à “imposição de valores esquerdistas” por meio do aparato institucional das OIs passaram a aparecer nos discursos negacionistas. Críticas às pautas ambientais, questões de direitos humanos, como igualdade de gênero e direitos LGBTQIA+, alegando que “[as OIs] operam então em cada localidade para disseminar e tornar aceitáveis pautas como a ideologia de gênero, a luta feminista, a causa ambientalista, o desarmamento, levando adiante os planos de transformação social” (BRASIL PARALELO, 2022:24). Em conjunto, acusam a OMS, UNESCO, PNUD e ODS a ter “por finalidade constranger os líderes dos países a adotarem políticas específicas na persecução de metas estabelecidas pela própria organização, que recorrentemente tenta ampliar seu poder sob a justificativa de que alguns problemas alcançaram um nível de complexidade tão elevado que já não é possível solucioná-los a não ser por meio de uma coordenação global” (op.cit.:27-28). Quais são as políticas e as metas mencionadas? Quais são os líderes que se dizem constrangidos? Essas perguntas devem permanecer silenciadas por quem lê.

Denúncia 3: Poder Institucional Supranacional

A Globalização pode ser entendida como um fenômeno de integração econômica, social e tecnológica que engloba todo o planeta, e que ganhou força após a Guerra Fria. Ele traz consigo a ideia de “unificação do mundo” que, para a Brasil Paralelo, solapa a soberania do Estado, visto que a globalização desencadeia processos globais que tendem a “dissolver” culturas, economias e fronteiras. Estaríamos diante de uma conspiração global que tem como propósito impor certas regras aos Estados, ferindo a sua soberania nacional, para alcançar uma cultura universal baseada em valores contrários aos da sociedade atual? Esta é um tipo de indagação que faz parte do discurso negacionista nas três áreas que focamos aqui (saúde, política externa e meio ambiente).

Neste sentido, o globalismo seria uma ideologia inserida em uma teoria conspiratória, na qual atores multilaterais localizados na “expansão da nova ordem mundial” – como ONU, OMS, FMI, BIRD, Tribunal Internacional de Justiça, OEA, UNESCO, UNICEF, OTAN, Comissão Trilateral, Diálogo Interamericano, Foro de São Paulo [1] são entendidos como “agentes globalistas” que negam a nação e o nacionalismo. Estes agentes teriam por objetivo instaurar valores progressistas como democracia, estado de direito, sustentabilidade e saúde pública nos demais Estados, instituindo um poder legal sobre os mesmos e atravessando a autonomia destes países no sistema internacional (BRASIL PARALELOa, 2022).

Neste contexto, não é surpresa que os rumos da ‘nova política externa brasileira’ tenham somado esforços para construir relações com países que pouco valorizam o multilateralismo, como os do Golfo Pérsico, e que possuem ideais bastante semelhantes aos do atual governo brasileiro – autoritarismo, xenofobia, misogenia e racismo.

O caso mais emblemático de tal aproximação foi o conjunto de comitivas organizadas pelo Deputado Federal Eduardo Bolsonaro para o Bahrein:

“Há muitas oportunidades nesses países (no Golfo Pérsico), então a intenção é ficar ainda mais próximo […] Retornei agora com o presidente Jair Bolsonaro e a visão é a melhor possível. É um país totalmente desenvolvido (referindo-se ao Bahrein) […] O Bahrein pode ser visto como o um hub para a entrada de nossos produtos na Ásia […] Assim vamos construindo uma relação estratégica de alto nível. “(BOLSONARO, 2022).

No que diz respeito às relações com a China, é importante pontuar que as falas, tanto de Ernesto Araújo como de Eduardo Bolsonaro, causaram sérios conflitos diplomáticos com o país asiático – lembrando que se trata do maior parceiro comercial do Brasil, correspondendo a 31,3% nas exportações e 21,7% nas importações brasileiras em 2021 (G1, 2022). Ao afirmarem, explicitamente, que seria a China responsável pela pandemia, esses discursos desestabilizam as relações com o país, aprofundando a diferenciação entre o Eu/Outro tão problemática na condução da política externa.

Imagem 3: Poder 360, Março/2020.

Essa diferenciação, natural nos processos de construção de identidade, é potencializada de forma extremista pelo discurso negacionista. Isso pode não só criar um terreno fértil para a discriminação, como também encoraja o uso da violência contra um inimigo selecionado para ser eliminado. Um exemplo paradigmático disso é o ataque ao Consulado Chinês no Rio de Janeiro, em Setembro de 2021, quando um homem lançou uma bomba nas instalações da missão chinesa. Ainda que não seja possível afirmar que foi uma ação resultante do discurso negacionista, essa se deu num contexto em que o ódio aos chineses foi inflado pública e abertamente pelo governo.

A mudança do posicionamento brasileiro no cenário internacional pode ser explicada pela busca por potenciais parceiros que compartilham de muitas das mesmas normativas e ideais do governo Bolsonaro – como os países do Golfo Pérsico – alinhando-se no aspecto ideológico e na visão de que o multilateralismo e o movimento globalista só usam da coerção para ganhar poder sobre os Estados. O resultado, como reportado pelo O Globo, foi: “O Brasil acompanhou a posição de países de maioria islâmica, boa parte deles com governos autoritários, divergindo da quase totalidade das nações europeias e ocidentais, em várias votações sobre direitos sexuais e das mulheres no mais importante órgão de Direitos Humanos da ONU nesta quinta-feira” (DUCHIADE, 2019).

Nesse sentido, as bases para a aproximação surgem de argumentos do campo ideológico e não do campo econômico-comercial. A sinergia advém de uma visão de mundo conspiratória, pautada na construção da imagem de um grande inimigo em escala global, que tenta impor seus próprios interesses, sempre diametralmente contrários aos dos Estados nacionalistas, como o Brasil se vê. Nessa perspectiva, os interesses em torno da economia e do comércio internacional se tornam secundárias, servindo apenas como um meio discursivo para a tentativa de convencimento da população acerca dos benefícios da aproximação com ditaduras autocráticas como a do Bahrein.

Conclusão

Como reagir ao mundo quando se pretende enxergar a realidade por lentes distorcidas? O negacionismo age em diferentes esferas da sociedade ao apontar um certo grupo como inimigo, criando a sensação de pertencimento e laços de solidariedade entre aqueles que possuem as mesmas crenças e ideologias, como o “patriotismo”, além de incentivar o sentimento de superioridade moral e intelectual. Nessa lógica, toda a sua comunicação se baseia na moral e na educação – esta prioritariamente pautada nas normas tradicionalistas atreladas à religião cristã e ao núcleo familiar, em diferenciação ao aprendizado formal e científico. A partir desse viés, cria-se toda a narrativa negacionista que, como vimos, se desdobra em múltiplas áreas e alvos, sempre baseada em uma iminente ameaça aos valores “de bem” por meio da atuação coercitiva e hipócrita de organizações internacionais e da sociedade civil organizada (militância, como eles chamam).

Assim, para os negacionistas, a ciência é um alarde e os líderes internacionais só querem deter o desenvolvimento brasileiro: “Os dados não são compatíveis com tamanho alarde. O Brasil é um dos países que mais preserva sua vegetação no mundo. Em 2018, 66,3% de nossas terras eram áreas de preservação e proteção e apenas 7,8% de produção agrícola. Diante de um percentual tão baixo, ceder cada vez mais espaço da zona produtiva pode significar limitar o crescimento brasileiro” (BRASIL PARALELO 2022:16). Constranger a atuação de um líder negacionista ambiental é parte do globalismo, que sucumbe com o tradicionalismo e autonomia local. As elaborações discursivas são complexas. Para reagir é preciso enxergá-las.

“A partir do reconhecimento de que existem sentimentos de insatisfação, descrença e exaustão em relação ao sistema democrático, a reação consiste, primeiramente, em acolhê-los, oferecendo discursos que demonstram a fronteira entre fantasia e realidade” (SALGADO 2022:98), isto é, entre a pós-verdade do negacionista materializada em crenças e opiniões que se retroalimentam em bolhas algorítmicas, e a realidade dos fatos e evidências empíricas. Em reação, precisamos furar nossas bolhas universitárias e acadêmicas, fomentar a divulgação científica e incluir a população nos debates que impactam diretamente a vida cotidiana.


Bianca Carvalho é graduanda no Instituto de Relações Internacionais PUC-Rio

Carolina Salgado é professora no Instituto de Relações Internacionais PUC-Rio

Luís Fernando Barros é bacharel em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais PUC-Rio

Paula Rocha é graduanda no Instituto de Relações Internacionais PUC-Rio

Renan Canellas é graduando no Instituto de Relações Intrnacionais PUC-Rio e estagiário de pesquisa no Laboratório de Financiamento e Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (LACID) do BRICS Policy Center.


Notas e Referências

[1] Clube Bilderberg e Clube de Roma também foram citados pelo Brasil Paralelo como atores multilaterais engajados na “expansão da nova ordem mundial”.

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