Aprendendo a conviver no Brasil dividido: democracia, eleições e conversas difíceis

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Aprendendo a conviver no Brasil dividido: democracia, eleições e conversas difíceis

Isabel Rocha de Siqueira

aprox. 8 min de leitura

Chegamos ao fim das eleições presidenciais de 2022 e a sensação é mista: os anos Bolsonaro parecem um pesadelo, um ponto fora da curva na história da democracia brasileira, ao mesmo tempo em que fica claro que o bolsonarismo como movimento não foi derrotado e está enraizado na sociedade. Também ficou claro que a onda conservadora que ele representou não foi única deste país, mas parte de um movimento mais amplo internacional. Se a polarização de hoje é a mesma que passou a fazer parte do nosso dia-a-dia em 2018, então o resultado apertado do segundo turno das eleições para presidente de modo algum nos exime de pensar como vamos viver todos juntos em sociedade. E precisamos descobrir como.

A jornalista Vera Magalhães, tão atacada nos últimos meses, disse em sua coluna logo após o anúncio do resultado que Lula “foi escolhido, por pouco, para governar um país profundamente dividido, angustiado, raivoso e desconfiado.”1 Foram 2,1 milhões de votos de diferença. Todos os adjetivos usados por ela se aplicam. O Brasil está rachado e não sabemos até onde irão as rachaduras. O que sabemos é que as democracias se baseiam no diálogo e morrem quando ele fracassa.

Em quatro anos, não aprendemos a habitar o entre-pólos, mas vamos precisar descobrir meios de estar juntos e pensar política juntos, não só porque o Congresso e o Senado têm potencial de desgovernar, mas porque a sociedade rachada tem produzido ainda mais violência em um país já violento e tem falhado monumentalmente em produzir e manter políticas públicas para o bem comum – meio ambiente, educação, saúde, combate à fome e proteção de minorias, entre as principais frentes.  

Em 2019, houve pelo menos um episódio de violência política registrado a cada três dias no Brasil.2 Em 2022, nove partidos buscaram a Justiça para criar um disque-denúncia contra violência política, e os registros de violências política chegaram a um em cada dois dias.3 Em entrevista ao jornal Estadão, o cientista político Bolívar Lamonier afirma que “esta crise é muito mais perigosa e pode levar a um período razoavelmente longo de conflito.”4 Igualmente, Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da USP, disse, logo antes do segundo turno: “O país está muito dividido, as instituições estão em frangalhos, e estamos perdendo dia após dia a capacidade de conviver.”5 Ele continua, em tom contundente: “Só há uma saída capaz de evitar nosso curso em direção à guerra civil. É preciso distensionar as relações. É preciso escutar as demandas de fundo do bolsonarismo e oferecer para elas outras respostas. Outras respostas!”

Em 2019, quando ainda encarávamos sem entender os resultados da eleição de 2018, com impactos sobre famílias, amigos e sociedade de modo geral, desenhei um curso de graduação que visava ser um experimento social em convivência. Lemos muito sobre responsabilidade, solidariedade e como viver juntos em contexto de polarização. Traçamos estratégias para pensar e escrever juntos e as atividades envolviam se colocar em interações com pessoas que tinha posições políticas diversas. Na época, eu estava preocupada com o espaço digital e o curso foi desenhado para produzir reflexões sobre como esse espaço estava sendo ocupado por nós e quais eram os impactos do digital na nossa democracia. 

O curso rendeu muita análise e foram muitas as tentativas de colocar no papel o que aprendemos naquele momento, teorizando juntos sobre as dificuldades impostas por uma sociedade rachada. Como conversar? Quais são os limites do diálogo? Como traçamos estes limites?

Essas são as reflexões na base do artigo Data-caring in digital democracies: Brazilian politics and a pedagogical experience with conversations,6 que publiquei na revista Globalizations, em edição especial sobre democracias digitais. Nele, trago algumas propostas para essa tarefa extremamente difícil de dialogar em um momento de divisão tão acirrada.  Mas é preciso antes entender por que se tornou tão difícil esse diálogo e em que medida a dificuldade que encontramos tem raízes profundas nas mudanças que passamos a viver nas nossas relações.

Em primeiro lugar, como muitos pesquisadores mostram,7 a lógica digital tem trabalhado incessantemente pela via da oposição e, muito importante, há uma pedagogia que ensina essa lógica de forma muito eficiente via mídias sociais, como o Whatsapp no Brasil. Assim, há uma disputa crucial na arena da pedagogia que nos leva a pensar como ensinar outras lógicas de relacionamento com a diferença, que não pela oposição.

Figura 1: Cesarino, L. “Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil”, em https://revista.internetlab.org.br/serifcomo-vencer-uma-eleicao-sem-sair-de-casa-serif-a-ascensao-do-populismo-digital-no-brasil/

Além disso, como colocar Sherry Turkle, a internet age como uma prótese de informação: recorremos a ela para buscar parcelas de informação sob demanda, conforme os moldes desejados, de modo que ficou normal ter acesso a pedaços de informação sem que façam parte de um todo, de uma narrativa no melhor sentido da palavra. E assim vamos também nos tornando menos hábeis na articulação de ideias.

E claro, estamos vivendo um momento já muito estudado por tantos pesquisadores em que nos conhecemos, no meio digital, via categorias prontas e simplistas. E um dos grandes impactos desses rótulos é também se desfazer das nuances e das histórias de mudanças. Não à toa, tantos teóricos estão apontando para a perda do valor do debate por si mesmo. O debate agora tem como fim a vitória apenas, a aniquilação da ideia do outro, e o diálogo mesmo tem valor secundário ou nulo. Logo, em um ciclo vicioso, as categorias servem ao propósito de finalizar o debate mais rapidamente – sem de fato haver debate algum.

Figura 2: Excerto de chat em curso “Despolarize”, oferecido há exatos dois anos pelo Politize, em 31 de outubro de 2020 (pela autora)

Com tudo isso, o artigo argumenta que estamos vivendo um problema grave: estamos encurtando as narrativas sobre nós mesmos e sobre como nos relacionamos com outras pessoas. As histórias que deveriam ser complexas se resumem a diferenças que ainda por cima parecem diferenças de princípios, ou seja, é como se todas as diferenças fossem da ordem dos princípios universais e, portanto, inegociáveis nesses termos, tornando vários de nós fundamentalmente incompatíveis.

Mas para quem estuda temas como pluralismo e cosmopolitanismo,8 é fundamental lembrar que grande parte da democracia acontece nos pequenos acordos, no dia-a-dia da política pública e, aliás, boa parte da vida acontece também nas práticas mais rotineiras. O que a vida digital nos faz esquecer é que existe muito espaço para essas pequenas concordâncias, mas mais do que isso, que sem elas, não há democracia que se sustente.

O artigo “Data-caring” trata, então, da experiência do curso de graduação em que praticamos alongar os arcos narrativos, isto é, prolongar o tempo de convivência a fim de encontrar esse espaço das pequenas concordâncias. Contei com bell hooks9 para pensar pedagogicamente a construção dessas histórias mais complexas e de espaços que nos permitam prolongar o nosso “estar junto” para além ou antes mesmo das categorias prontas da vida digital. 

No coração da análise está a ideia de que as relações políticas estão acontecendo como se existissem de forma dissociada das relações sociais, como se ocupassem outros espaços, e estão acontecendo via atalhos que empobrecem qualquer debate democrático e convidam à violência e à polarização. 

Figura 3: Do relatório “Violência política e eleitoral no Brasil”, da organização Terra de Direitos, em http://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/download?id=bHRkNWJlaTdzaXFtb3BpbzZubW1zZzVkMTc=&f=4&success=1

Por isso, junto com muitas vozes críticas dos estudos de dados e da dataficação10, proponho no artigo uma abordagem pedagógica que chamo de dado-cuidado, uma abordagem que experimentamos no curso de graduação desenhado no período pós-eleição de 2018. Como abordagem, o dado-cuidado visa oferecer caminhos para repensarmos nossa presença digital, levando em consideração seus impactos sobre nossas relações e sobre nossas democracias.

A proposta de dado-cuidado implica aprender a cuidar, o que, por sua vez, envolve o desenvolvimento de ferramentas pedagógicas que possam fazer frente à “fuga da conversa”. Afinal, “’falar e ouvir com atenção são habilidades’, podem ser ensinados”11.

O cuidado aqui é material e afetivo; trata-se de um “jeito coletivo de aprender a cuidar – constantemente”. Por isso, o cuidado a que me refiro é também especulativo; diz respeito a uma “curiosidade permanente” que continua perguntando “como cuidar?” do outro e dos espaços de diálogo, mesmo em momentos muito desafiadores. 

Assim, a abordagem de dado-cuidado pressupõe vigilância, resistência, interrogação e desaceleração das formas como nos colocamos à disposição para a dataficação no mundo digital e visa criar um corpus de interrupções, interstícios e atos de prolongamento de nossos arcos narrativos do Eu e do Outro no mundo digital. Não dá para separar o papel que as mídias sociais digitais ocupam hoje nas nossas vidas dos impactos que tiveram e têm no jogo democrático.

Portanto, o artigo propõe ações em três frentes como modo de intervir sobre essa tomada digital:

  • Cuidado a respeito dos dados (caring about data) – o que aponta para a necessidade de pensar novas fronteiras de desigualdade entre países do Norte e do Sul global (colonialismo de dados – quem está produzindo e lucrando com dados?12), mas também as bolhas sociais, ou seja, implica tomar cuidado com a produção de dados para que não gere ainda mais desigualdades ou oposições violentas.
  • Cuidado com dados (caring with data) – envolve iniciativas como geração cidadã de dados (GCD), que buscam valorizar a própria maneira de produzir dados de forma diferente, construindo comunidades.13
  • Dataficando com cuidado (datafying with care) – aponta para a necessidade de dataficar de outras formas, pensando em termos de curadoria, por exemplo, e não em coletar dados como outra forma de simplesmente extrair. Dessa forma, convidamos responsabilidade sobre as narrativas geradas.14

Nesse sentido, não adianta restringirmos disparo de mensagens e criarmos bancadas de checagem de fatos no combate às fake news. Enquanto as soluções permanecerem no domínio da eficiência instrumental, nossa democracia, como outras, sofrerá. Precisamos avançar para novas abordagens pedagógicas que ensinem a cuidar e a dialogar, e precisamos lembrar que a aprendizagem não ocorre apenas em salas de aula formais, para que tais abordagens possam ser adaptadas a diferentes públicos.

O artigo propõe que, em tempos digitais, esse aprendizado voltado para o “estar junto” não pode deixar de enfrentar a maneira como o digital inibe narrativas mais complexas.  Passa, portanto, por construir espaços, ferramentas e práticas que gerem conversas mais prolongadas para além do tempo de captura de uma única informação ou de atribuição de um rótulo.

É uma agenda de pesquisa e uma agenda política ainda em exploração, mas que considero mais importante do que nunca. Fica o convite para conversamos mais.

*Os pontos de vista, pensamentos, e opiniões expressos neste texto pertencem somenta à autora, e não refletem necessariamente o posicionamento da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) ou de seu Instituto de Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio).


LEIA MAIS EM:

Isabel Rocha de Siqueira (2022) Data-caring in digital democracies: Brazilian politics and a pedagogical experience with conversations, Globalizations, DOI: 10.1080/14747731.2022.2122282

CONFIRA A APRESENTAÇÃO DO ARTIGO NO I COLÓQUIO DE HUMANIDADES DIGITAIS DA PUC-Rio:

A fala da prof. Rocha de Siqueira tem início em 8:11:10

Notas e Referências
  1.  https://oglobo.globo.com/blogs/vera-magalhaes/coluna/2022/10/um-pais-a-reconstruir.ghtml
  2.  http://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/index?download=1 
  3. https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/eleicoes-de-2022-sao-marcadas-pela-violencia-politica/ 
  4. https://www.estadao.com.br/politica/bolivar-lamounier-a-sociedade-hoje-esta-dividida-de-alto-a-baixo/ 
  5. https://oglobo.globo.com/opiniao/pablo-ortellado/coluna/2022/10/nao-vai-ser-facil-governar-um-brasil-tao-dividido.ghtml 
  6.  https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14747731.2022.2122282 
  7.  Cesarino, L. (15 April 2019c). On digital populism in Brazil. PoLAR: Political and Legal Anthropology Review. Section Ethnographic Explainers, Retrieved 27 January 2022 from https://polarjournal.org/2019/04/15/onjair-bolsonaros-digital-populism/ ; Cesarino, L. (2019a). Identidade e representação no bolsonarismo: Corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, 62(3), 530–557. https://doi.org/10.11606/ 2179-0892.ra.2019.165232 Cesarino, L. (2019b). Pós-verdade e a crise do sistema de peritos: Uma explicação cibernética. Revista Ilha, 23(1), 73–96. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75630 Cesarino, L. (2020). What the Brazilian 2018 elections tell us about post-truth in the neoliberal-digital era. Fieldsights, Section Hot Spots, Retrieved 27 January 2022 from https://culanth.org/fieldsights/what-thebrazilian-2018-elections-tell-us-about-post-truth-in-the-neoliberal-digital-era 
  8.  Appiah, K. A. (2004). The ethics of identity. Princeton University Press.
  9.  hooks, b. (2003). Teaching community. A pedagogy of hope. Routledge. hooks, b. (2018). Ensinando a Transgredir. A Educação como Prática da Liberdade. Editora Martins Fontes.
  10.  D’Ignazio, C., & Klein, L. F. (2020). Data feminism. The MIT Press; Loukissas, Y. A. (2019). All data are local: Thinking critically in a data-driven society. The MIT Press; Ruppert, E. (2011). Population objects: Interpassive subjects. Sociology, 45(2), 218–233. https://doi.org/10. 1177/0038038510394027 Ruppert, E., Isin, E., & Bigo, D. (2017). Data politics. Big Data & Society, 4(2), 1–7. https://doi.org/10.1177/ 2053951717717749 Silva, T. (org.) (2020). Comunidades, algoritmos e ativismos digitais: Olhares afrodiaspóricos. LiteraRUA; Silveira, A. S. (2010). Ambivalências, liberdade e controle dos ciberviventes. In A. S. Silveira (Ed.), Cidadania e redes digitais = Citizenship and digital networks (pp. 64–85). Comitê Gestor da Internet no Brasil; Souza Ramos, J. (2015). Subjetivação e Poder no Ciberespaço. Da Experimentação à Convergência Identitária na Era das Redes Sociais. Vivência, 1(45), 57–76.
  11.  Turkle, S. (2015). Reclaiming conversation. The power of talk in a digital age. Penguin Press, p. 16.
  12.  Tatcher, J., O’Sullivan, D., & Mahmoudi, D. (2016). Data colonialism through accumulation by dispossession: New metaphors for daily data. Environment and Planning D: Society and Space, 34(6), 990–1006.
  13. https://medium.com/data-labe/gera%C3%A7%C3%A3o-cidad%C3%A3-de-dados-um-fazer-pol%C3%ADtico-c6b0450babfa 
  14.  Benjamin, G. (2021). What we do with data: A performative critique of data ‘collection’. Internet Policy Review, 10(4), 1–27